A violência contra as mulheres, designada violência de gênero, é considerada um problema de saúde pública pela Organização Mundial da Saúde (OMS) desde 1990.
A maioria desses atos violentos ocorre no ambiente doméstico e a vítima geralmente conhece o agressor. Violências baseadas em gênero compreendem agressões de caráter físico, psicológico, sexual e patrimonial e podem culminar na morte da mulher por suicídio ou por homicídio.
Os homicídios decorrentes de conflitos de gênero têm sido denominados FEMICÍDIOS, termo de cunho político e legal para se referir a esse tipo de morte.
O termo femicídio foi usado por Russell em um tribunal de direitos humanos e corresponde a qualquer manifestação ou exercício de relações desiguais de poder entre homens e mulheres que culmina com a morte de uma ou várias mulheres pela própria condição de ser mulher.
Esse tipo de crime pode ocorrer em diversas situações, incluindo mortes perpetradas por parceiro íntimo com ou sem violência sexual, crimes seriais, violência sexual seguida de morte, femicídios associados ou relacionados à morte ou extermínio de outra pessoa.
Mais da metade dos homicídios de mulheres correspondem a femicídios causados pelas desigualdades de gênero e esse fenômeno está presente em vários continentes.
Estima-se que entre 60% e 70% dos femicídios nos Estados Unidos e Canadá sejam cometidos por companheiros ou ex-companheiros.
Na Europa, em países como a Rússia, homicídios e femicídios atribuídos à desorganização social aumentaram com a dissolução da União Soviética, que propiciou a proliferação das máfias e de crimes violentos.
Dados de organizações de direitos humanos apontam que a Guatemala, que passou por violentos conflitos internos, possui uma das maiores ocorrências de femicídios das Américas.
Entre 2003 e 2005, 1.398 mulheres foram assassinadas na Guatemala, 1.320 em El Salvador, 613 em Honduras, mais de 400 no México e 269 na Nicarágua.
A mortalidade masculina por violência também tem aumentado em várias regiões da América Central e do Sul e, ao contrário dos homicídios de mulheres, tanto vítimas quanto perpetradores são homens.
Os assassinatos masculinos não ocorrem pela desigualdade de gênero, e sim por conflitos que ocorrem no espaço da rua: brigas, controle do território, pertencimento a gangues, narcotráfico, grupos de extermínio, enquanto as mortes de mulheres são da ordem da violência privada que permeia as relações intersubjetivas entre homens e mulheres.
Entre os fatores socioeconômicos e demográficos associados ao assassinato de mulheres pelos parceiros, incluem-se a pobreza das famílias, a disparidade de idade entre os cônjuges e a situação marital não formalizada.
Em vários países, um terço das mulheres tentavam obter a separação ao serem assassinadas, especialmente nos três meses que antecederam o crime, e possuíam histórias repetidas de violência e agressões.
Nos Estados Unidos, foram encontradas relações entre taxas de femicídio e locais de maior pobreza, instabilidade, população negra, desemprego e taxas de crimes violentos.
Quanto à relação entre religião e violência, considera-se que o discurso religioso reforça a misoginia, a afirmação da masculinidade hegemônica e a tolerância aos atos de violência contra as mulheres, uma vez que prega a submissão das esposas aos maridos.
Os femicídios têm sido fortemente associados a situações de desigualdade e discriminação de gênero, privação econômica e masculinidade agressiva e machista, incluindo uso de armas de fogo, envolvimento com crime organizado, tráfico de drogas e de pessoas, conflitos armados e alta mortalidade masculina por agressões.
As vítimas possuem condições sociais e econômicas que variam de acordo com o país e as circunstâncias. O padrão do femicídio que se repete na maioria dos países indica que as mulheres possuem risco muito maior que os homens de serem mortas pelo parceiro íntimo e que esse risco aumenta quando existem desavenças entre o casal.
Na América Latina, muitas mulheres assassinadas pertencem aos setores marginalizados da sociedade e comumente as mídias apresentam as vítimas como prostitutas, operárias das fábricas e montadoras transnacionais conhecidas como "maquilas" em países de língua espanhola, e membros de gangues ou redes de narcotráfico.
Em suma, mulheres jovens e pobres, migrantes, procedentes de áreas favelizadas ou irregulares, que realizam trabalhos precários estão em situação de elevada vulnerabilidade.
No Brasil, investigações sobre o tema mostram que os feminicídios predominam entre mulheres jovens, brancas, com nível fundamental de ensino, profissões não qualificadas, enquanto os agressores são jovens, geralmente com menor grau de escolaridade que as mulheres, casados, com antecedentes criminais, envolvimento repetido em brigas e conduta de ameaças e violências dirigidas contra as mulheres.
O Feminicídio no Brasil
Terminar um relacionamento ou não corresponder ao amor de alguém fez com que milhares de mulheres tivessem suas vidas ceifadas nos últimos anos no Brasil.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2016 e 2018 foram mais de 3,2 mil mortes no país.
Além disso, estimativa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), indica que, no mesmo período, mais de 3 mil casos de feminicídio não foram notificados.
O crime é um assassinato qualificado, incluído no Código Penal em 2015, que trouxe mais segurança jurídica para as mulheres e familiares ao tipificar com penas mais severas quem comete feminicídio. Mesmo assim, o número de mortes desse tipo aumenta a cada ano.
"O feminicídio é um tipo de crime doloso, aquele em que há intenção de matar. É o assassinato de uma mulher em razão de gênero, da condição do sexo feminino. O autor do fato, geralmente, é pessoa próxima à vítima, não necessariamente tem uma relação amorosa, mas quer demonstrar uma superioridade em relação à mulher", explica o advogado criminalista David Metzker, sócio da Metzker Advocacia.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que, no ano seguinte à tipificação do crime no Código Penal, houve o registro 929 feminicídios no país. Nos dois anos seguintes, em 2017 e 2018, foram 1.075 e 1.206 casos, respectivamente.
A tendência é também de crescimento em 2019, ano não incluído na análise. Segundo o Ministério da Justiça e Segurança Pública, até agosto de 2019, 2.357 mulheres foram assassinadas com dolo (não necessariamente por feminicídio).
Metzker explica que o assassino somente responderá pelo crime de feminicídio após o indiciamento ou denúncia por parte do Ministério Público.
“Depois que iniciarem as investigações e elas apontem indícios de feminicídio, o delegado conclui se houve essa prática. Mas quem trará a certeza é o Judiciário, ao confirmar através de sentença”, assinala.
O crime é punível com 12 a 30 anos de reclusão e a pena pode ser aumentada em até 50%, caso o crime seja praticado quando a mulher estiver grávida ou até três meses após o parto, na presença da família da vítima ou contra pessoa menor de 14 anos, maior de 60 anos ou com deficiência.
Segundo Priscilla Maia Andrade, professora do departamento de Serviço Social da Universidade de Brasília (UnB), a questão envolve hierarquia, patriarcado e, principalmente, a desigualdade social.
Ela aponta que as fragilidades da sociedade produzem pessoas cada vez mais violentas. “É uma série de fatores que incidem para que uma situação de violência aconteça, inclusive a situação de aprendizagem. Violência também acaba sendo uma maneira de se comunicar, por assim dizer. É a questão de como o patriarcado estrutura sistemas dentro da nossa sociedade, seja num contexto mais amplo, seja no contexto familiar”, analisa.
Instrumentos
Priscila explica que ter leis de proteção são grandes avanços civilizatórios, pois se reconhece o problema. Porém, segundo a professora, a legislação não adianta se não existirem instrumentos que possibilitem a concretização para sua execução. Haja visto que, desde que foi sancionada, o número só cresce.
“Precisamos de mais agentes, policiais capacitados, um Judiciário sensibilizado e ações de apoio para as mulheres que sofrem algum tipo de violência”, destaca.
A especialista esclarece que é preciso mobilização nas áreas da saúde, da educação e da assistência social, para permitir a essas mulheres denunciarem seus algozes, com garantia de efetiva proteção.
“Muitas vezes, só a simples existência da lei não intimida os agressores e tampouco motiva as vítimas a fazerem denúncias”, enfatiza.
Assim, a autoproteção ainda é a melhor saída. O advogado Metzker reforça que as mulheres devem ter certos cuidados relacionados a abusos.
Ele ainda indica a utilização do “botão do pânico”, um aplicativo para smartphones para acionar a polícia quando estiver em situação vulnerável.
“Não se deve romantizar abusos sofridos. É preciso noticiar quando ocorrer violências: física, moral e psicológica”, alerta.
Estudando assassinatos de mulheres no CE, a Profª Maria Dolores de Brito Mota, Socióloga, da Universidade Federal do Ceará, apresenta uma classificação de feminicídios. Eis uma síntese:
- Feminicídio passional - é o mais comum quando os assassinatos de mulheres são cometido por homens com os quais as vítimas mantinham ou mantiveram envolvimento amoroso. Os autores foram maridos, ex-maridos, companheiros, ex-companheiros, namorados, ex-namorados e até apaixonados não correspondidos;
- Feminicídio por vingança - caracteriza-se por ser assassinato de mulheres querendo atingir também pessoas de suas relações com as quais o assassino tinha desavenças;
- Feminicídio matricida - matar mãe em circunstâncias envolvendo conteúdo de gênero, em que estavam desempenhando seu papel de mãe, cuidando dos filhos para que não bebessem ou por que tinham problemas mentais;
- Feminicídio filicida - mulheres, meninas assassinadas por seus pais em circunstâncias com conteúdo de gênero. Matar filha pequena por ter sido abandonado pela mulher a qual espancava;
- Feminicídio triangular - casos de triângulo amoroso, onde a raiva e o ódio de uma mulher é dirigido à outra, a sua concorrente amorosa;
- Feminicídio por crueldade - criminalidade social com diferencial expresso por intensa brutalidade, com sinais de tortura, violência sexual;
- Feminicídios por nazi-fascismo - assassinato de mulheres de uma determinada etnia, raça, crença, profissão (prostitutas, por exemplo) , idosas, portadoras de deficiência;
- Feminicídios homofóbicos - assassinato de mulheres lésbicas, por estarem lésbicas;
- Feminicídios por ativismo político - assassinato de mulheres por suas atividades políticas (caso de Dorothy Stang, Margarida Maria Alves e outras).
- Feminicídios por futilidade - assassinatos de mulheres por misoginia (aversão a tudo que é ligado ao feminino e às mulheres);
A impunidade é crime
Essa frase é um tanto tautológica, mas necessária para tentar amealhar solidariedade nessa luta contra a violência geral e, em particular, contra mulheres e meninas.
É certo que assassinatos de mulheres têm recebido, ultimamente, certa atenção da mídia , até porque um deles (em BH-MG), foi gravado por câmera de segurança, o que causou um choque significativo.
A vítima foi a cabeleireira Maria Islaine de Morais, 31 anos, morta pelo ex-companheiro com nove tiros, que a ameaçava há um ano e estava enquadrado na Lei Maria da Penha.
A Folha de São Paulo (jornalista Mônica Bergamo, 29.03.10), publicou sobre o tema, algo como: “(...) resultado de uma pesquisa apontou que, de 2003 a 2007, 51,6% dos 5.564 municípios brasileiros não registraram nenhum homicídio de mulheres. Outros, no entanto, concentraram elevado índice".
Entre os mais violentos está o município paraense de Tailândia, com média de 19,9 mortes por 100 mil mulheres, seguido de Serra (ES), com 18,6; Monte Mor (SP), com 16,3, e Macaé (RJ), com 16,1.
Se esses municípios fossem países, seriam os mais violentos do mundo para mulheres - afirma o autor da pesquisa, Julio Jacobo, que comparou os dados aos de 80 nações.
Os líderes do ranking são: 1) El Salvador (12,7 homicídios por 100 mil mulheres); 2) Rússia (9,4 homicídios por 100 mil mulheres) e 3) Colômbia (7,8 homicídios por 100 mil mulheres).
Todos têm índices de assassinatos bem menores do que os dessas cidades brasileiras (...). Por outro lado, dá para perceber que casos de femicídios têm maior repercussão midiática quando as vítimas são consideradas "bonitas", dentro do padrão de beleza televisiva: geralmente mulheres brancas (louras principalmente), artistas, jornalistas ou mulheres que têm status social significativo – ou ainda, quando estão envolvidos homens "públicos".
Assassinatos de mulheres que estão na pobreza, negras, indígenas, prostitutas (de baixa remuneração), ou em situações cumulativas, geralmente ficam sem ou com pouca repercussão. A Lei Maria da Penha trouxe avanços significativos, mas ainda são poucos, diante da cultura machista que encharca nossa sociedade.
São necessárias, entre outras ações, campanhas, mais debates no sistema educacional. Por outro lado, enquanto o sistema judiciário não for suprido de mais profissionais que tenham efetivo compromisso com a justa aplicação e distribuição de justiça, mais longo será o caminho para a conquista da equidade entre homens e mulheres.
Em persistindo situações onde um assassino é preso, mas logo é solto, um dia teremos de buscar, entre outras providências, a criminalização da impunidade.
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